quarta-feira, 21 de setembro de 2011

A AUTOCRIAÇÃO DE ZARATUSTRA

“Torna-te quem és”
 Píndaro (poeta lírico grego)

              A criação do conceito de autopoiesis é pensada a partir da filosofia da criação de conceitos de Deleuze e Guattari em O que é a filosofia? e do poema em prosa Assim falou Zaratustra de Nietzsche.
              O teor filosófico do Assim falou Zaratustra é o pensamento em devir do personagem conceitual Zaratustra, um devir pindárico em que ele se torna o que é: o mestre do eterno retorno. Este pensamento é interpretado perspectivisticamente a partir da condição singular na qual se desenvolve a intuição que avalia a vontade em sua potência criadora de vida.
              Ao pensarem o caráter autopoiético do conceito, pelo qual é reconhecido um conceito verdadeiramente criado, Deleuze e Guattari pensam a criação do conceito como uma autopoiesis, uma autoposição, uma autocriação da filosofia através de conceitos, pois, para eles, “pensamento é criação”.
              A autopoiesis de Zaratustra, sua autocriação, forma o caráter pelo qual ele é reconhecido por si mesmo, assumido por Nietzsche e considerado por seus intérpretes, como aquele que se torna quem é: “o mestre do eterno retorno”. Essa autocriação de Zaratustra é realizada por sua vontade criadora, que é um modo de sua vontade de potência, ao longo de um caminho de auto-superação, no qual a vida é criada como uma obra.
              O objetivo do texto a ser apresentado é pensar a autopoiesis de Zaratustra, enquanto personagem conceitual, como um caminho crítico de criação dos conceitos principais da filosofia de Nietzsche, com o interesse de servir para a elaboração da compreensão das possibilidades de conjugação de crítica e criação no pensamento que considera a arte como metáfora da vida, que entende “a vida como fenômeno estético”, ou ainda, “o mundo como obra de arte em auto-gestação”.
              Busca-se ainda delinear o caminho da transmutação de sentidos e valores de um pensamento vitalizante que seja redentor do prazer de conhecer criando e nos libere para a inocência lúdica da criança presente em cada participante da alegria trágica de experimentar e indagar a existência.
              Procura-se mostrar como a perspectiva crítica presente no Assim falou Zaratustra conduz à afirmação do sentido criativo da existência em termos do devir pindárico autopoiético de criar a si mesmo, tornando-se o que se é. A visão crítica volta-se para o modo do ser humano relacionar-se com o devir de valores, afetos, corpo, confrontando a vontade com sua necessidade de superação de perspectivas morais, metafísicas e racionais. A potência da vontade de auto-superação é apontada então como a mais elevada meta de realização. A vontade é conduzida por esta crítica a um momento crítico que instaura uma crise no pensamento ao confrontá-lo com o abismo de um “pensamento abismal” que questiona a vontade diante de seu devir. A vontade é levada a transmutar valores, redimir afetos e apropriar-se do corpo para poder aprovar tragicamente a existência.
              A vontade de auto-superação que é a vontade de potência encontra então seu sentido afirmativo criativo diante da possibilidade de que todos os momentos eternamente retornem a acontecer. Esta corajosa e decisiva superação ocorre pela afirmação de uma vontade criadora e libertadora que vê a vida como um singular jogo de experimentação criativa no qual se parte de um caos originário e assim como os poetas, atores, dançarinos, nos tornamos crianças para a criação de mundo que se realiza a cada instante. Pois, como diz Hölderlin (poeta alemão): “É poeticamente que o homem habita esta terra”.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

NIETZSCHE: manual prático da guerra

Lição 1: A esquiva

Uma boa esquiva é ameaçadoramente o golpe em devir, com toda vontade de potência... Ao ser golpeado, esquive-se, olhe fixo nos olhos de seu agressor e faça o deus da guerra dançar ameaçadoramente no seu corpo fora do alvo: a boa esquiva sempre te coloca enquanto potência numa posição privilegiada de ataque, ainda que você não o faça e não o fazendo a potência reduplica-se cada vez mais no corpo engatilhado...

A boa esquiva é sempre proliferante como a diferença e não se traduz apenas em reação a um ataque: ela opera de forma não quantificada para além da força deletéria de origem, sendo, por isso mesmo, assustadora como devir que insinua.

O golpe pode nocautear, mas só a esquiva pode destruir teu adversário, por meio da força satírica que ela encerra, ao impor no cenário de guerra um corpo que se nega ao ataque, ainda que por um instante. Ademais, lembra-te que nem todo oponente é adversário e o golpe deve ser reservado apenas para aqueles dignos de tuas mãos.

Ao ser golpeado, não fuja, não reaja, torne-se, na arte da esquiva, aquilo que você é: "ad majora natus". Ao ser golpeado, lembre-se que Nietzsche recusou muitos adversários com sua esquiva, até que deus, e somente ele, subisse ao ringue. Ao ser golpeado, sorria, certifique-se de que realmente soou o gongo e apenas se este som ecoar no recinto, alongue-se, aqueça-se, ponha as luvas e honre o seu verdadeiro adversário.

Saudação Thai!

domingo, 4 de setembro de 2011

ZARATUSTRA – UM MODO SE USAR

Uma imagem fez empalidecer esse homem pálido. Ele estava à altura de seu ato quando o perpetuou, mas não suportou sua imagem depois de o ter consumado.
Sempre se viu apenas, desde então, como o autor de um único ato. Eu chamo isso loucura, o que para ele era exceção converteu-se em essência –
O personagem conceitual Zaratustra assim falava sobre o “pálido criminoso”, aguçando os olhos de águia por dentro do mecanismo da produção paralisante de um indivíduo como essência, e como essência adversa à ordem social, a partir de um ato socialmente criminalizado: “Um risco de giz hipnotiza a galinha. O ato praticado hipnotizou sua pobre razão”
A construção de uma norma legal que tipifica penalmente condutas que nomeia de “hediondas” reproduz uma zona simbólica, dentro do limite dos atos gravados, que têm a potência discursiva de coagular uma posição plausível de sujeito no conjunto de possíveis do imaginário social.
É uma zona de intensidade, mapeada pelo discurso legal (dentre tantos vários), para funcionar como possibilidade de produção de uma idéia de sujeitos de periculosidade extrema à “paz social”. Como se, a partir de um ato cometido por um indivíduo, toda a narrativa passada e futura de sua vida estivesse dentro do limite de produção simbólica deste ato. Uma linha de força que atua em devir: toda a vida pregressa levaria linearmente ao clímax narrativo – o ato penalizado – a partir do qual sua essência estaria revelada, passando a ser a nódoa desde então visível até o desfecho final. Um mecanismo simbólico que encarcera o indivíduo, como um acréscimo operacional ao mecanismo físico da prisão.
A perspectiva hipertrofiada de (não) poder ver a “si” mesmo dentro desse tipo de jogo discursivo foi encenada por Raskólnikof em Crime e castigo, como recurso narrativo de ampliação da zona de tensão pela qual se expande o personagem dostoievskiano.
“E por que classificais de vil o meu ato?”, perguntava a si próprio. “Por que é um crime? Que significa a palavra crime? A minha consciência está tranqüila. Sem dúvida foi um ato ilegal, violei a letra da lei, derramei sangue, pois bem, enforcai-me... e acabou-se! [...]”.
"Só reconhecia que andara mal numa coisa: em ter fraquejado; ter ido entregar-se".
"Outro pensamento fazia-o sofrer também: por que não se matara? Por que preferira entregar-se à polícia, em vez de se jogar na água? Era tão difícil vencer o amor à vida?"
Os vetores de força que atravessam a pretensa unidade do personagem Raskólnikof levam-no aos limites desenhados com o giz do mapeamento moral das condutas, em suas margens esfareladas. O jogo do discurso criminal que o joga e que ele dramatiza parece entrar em curto-circuito, fazendo a aparente unidade que a forma-personagem oferece se dispersar. A peça indivíduo-criminoso se multiplica em valências diversas, solicitando a posição de sujeito para a qual havia sido agenciado tanto na pergunta feita à idéia de “crime”, quanto na vontade de vida que aí se esboça e que prevalece ao final. Dostoievski parece salvar seu personagem do jogo aniquilador no qual está metido, remetendo-lhe, enfim, a uma zona de potência vital: “Não é sem razão que Dostoievski pretendeu que os detidos nas prisões siberianas formam o elemento mais vigoroso e mais precioso do povo russo” – assim falou um zaratustra.

sábado, 3 de setembro de 2011

EIS QUE – O HOMEM!

Na pequena biblioteca de casa, disponho na prateleira de auto-ajuda toda e qualquer capa que carregue a assinatura “F. Nietzsche”. Meu Ecce Homo, meu Zaratustra e todos os demais em fila indiana, carregados que estão de adesivos coloridos, sublinhas, setas, notas marginais, me fazem companhia plena, em especial nos dias em que o tempo sobra e as pessoas faltam, inclusive eu.

Ouço, em versos trocaicos, a aniquilação fulminante de qualquer coisa que se pareça com uma idéia, o desprezo por tudo que se queira captura e o sorriso altivo sobre os seus destroços. Fotografo as poses desse meu duríssimo analista e lhe respondo, tímida: até que gosto de idéias que a gente inventa, talvez apenas... pra me distrair.

Ele, então, executa aquele desvio estratégico que só ele...sai da pose – não salvei a fotografia – e agora, bebendo água, conversamos sobre alimentação, moradia, dieta espiritual, tratamento de enfermidades, estações do ano, o mar que vejo da janela, minhas aulas de dança. Respiramos pelo ventre. Sinto meu corpo. Não importa quando, não importa quem...e importa.

Lembro-me, com vontade certeira, de que me deram o nome Denise – da palavra francesa para Dionísio. Sem saberem. Lembro-me de que me constituía intensa para que passassem a saber. E continuo. Não permito que me capturem, nem o meu mais querido conselheiro. Executo viagens, bebo chá, amo as minhas histórias, os meus poemas, corto meu cabelo, me meto com jardinagem, faço minha própria comida.
E eis que – também – A MULHER!