domingo, 4 de setembro de 2011

ZARATUSTRA – UM MODO SE USAR

Uma imagem fez empalidecer esse homem pálido. Ele estava à altura de seu ato quando o perpetuou, mas não suportou sua imagem depois de o ter consumado.
Sempre se viu apenas, desde então, como o autor de um único ato. Eu chamo isso loucura, o que para ele era exceção converteu-se em essência –
O personagem conceitual Zaratustra assim falava sobre o “pálido criminoso”, aguçando os olhos de águia por dentro do mecanismo da produção paralisante de um indivíduo como essência, e como essência adversa à ordem social, a partir de um ato socialmente criminalizado: “Um risco de giz hipnotiza a galinha. O ato praticado hipnotizou sua pobre razão”
A construção de uma norma legal que tipifica penalmente condutas que nomeia de “hediondas” reproduz uma zona simbólica, dentro do limite dos atos gravados, que têm a potência discursiva de coagular uma posição plausível de sujeito no conjunto de possíveis do imaginário social.
É uma zona de intensidade, mapeada pelo discurso legal (dentre tantos vários), para funcionar como possibilidade de produção de uma idéia de sujeitos de periculosidade extrema à “paz social”. Como se, a partir de um ato cometido por um indivíduo, toda a narrativa passada e futura de sua vida estivesse dentro do limite de produção simbólica deste ato. Uma linha de força que atua em devir: toda a vida pregressa levaria linearmente ao clímax narrativo – o ato penalizado – a partir do qual sua essência estaria revelada, passando a ser a nódoa desde então visível até o desfecho final. Um mecanismo simbólico que encarcera o indivíduo, como um acréscimo operacional ao mecanismo físico da prisão.
A perspectiva hipertrofiada de (não) poder ver a “si” mesmo dentro desse tipo de jogo discursivo foi encenada por Raskólnikof em Crime e castigo, como recurso narrativo de ampliação da zona de tensão pela qual se expande o personagem dostoievskiano.
“E por que classificais de vil o meu ato?”, perguntava a si próprio. “Por que é um crime? Que significa a palavra crime? A minha consciência está tranqüila. Sem dúvida foi um ato ilegal, violei a letra da lei, derramei sangue, pois bem, enforcai-me... e acabou-se! [...]”.
"Só reconhecia que andara mal numa coisa: em ter fraquejado; ter ido entregar-se".
"Outro pensamento fazia-o sofrer também: por que não se matara? Por que preferira entregar-se à polícia, em vez de se jogar na água? Era tão difícil vencer o amor à vida?"
Os vetores de força que atravessam a pretensa unidade do personagem Raskólnikof levam-no aos limites desenhados com o giz do mapeamento moral das condutas, em suas margens esfareladas. O jogo do discurso criminal que o joga e que ele dramatiza parece entrar em curto-circuito, fazendo a aparente unidade que a forma-personagem oferece se dispersar. A peça indivíduo-criminoso se multiplica em valências diversas, solicitando a posição de sujeito para a qual havia sido agenciado tanto na pergunta feita à idéia de “crime”, quanto na vontade de vida que aí se esboça e que prevalece ao final. Dostoievski parece salvar seu personagem do jogo aniquilador no qual está metido, remetendo-lhe, enfim, a uma zona de potência vital: “Não é sem razão que Dostoievski pretendeu que os detidos nas prisões siberianas formam o elemento mais vigoroso e mais precioso do povo russo” – assim falou um zaratustra.

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